Liberdade segundo Rousseau, Aristóteles e Sartre

03/11/2015 18:12

Rousseau - O homem no Estado de Natureza


 

Segundo Rousseau (Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens), antes de existir no estado social, isto é, de viver em sociedade, o homem existia no estado de natureza. Do ponto de vista físico, esse homem primitivo, embora fosse menos forte e ágil em certos aspectos do que muitos animais, no conjunto levava vantagem sobre todos eles; a terra, naturalmente fértil e coberta de florestas imensas  “que o machado jamais mutilou”, 1  lhe permitia satisfazer todas as suas necessidades naturais (alimentação, reprodução, abrigo etc.) sem grandes dificuldades; acostumado desde a infância às intempéries da natureza, à intensidade das estações, à fadiga, a defender de mãos vazias e nu a  si mesmo e  à sua prole de  animais  ferozes ou  deles escapar correndo,  valendo-se para  isso  apenas  de seu próprio corpo, mostrava-se fisicamente robusto e ágil, muito mais do que qualquer homem poderia ser nos tempos atuais; graças à sua robustez, praticamente não conhecia doenças, exceto os ferimentos naturalmente decorrentes da velhice; visto que a conservação de sua vida era praticamente sua única preocupação, era natural que os sentidos mais desenvolvidos fossem aqueles mais diretamente voltados para esse objetivo (subjugar a presa ou escapar de tornar-se uma), como a vista, a audição e o olfato, ao passo que o tato e o paladar podiam permanecer rudes. Em suma, a exemplo do que ocorre com os animais que,  uma vez domesticados, perdem força, vigor e coragem,  também o homem, no estado de natureza, é muito melhor fisicamente do que no estado social.

Do ponto de  vista moral,  ao contrário  dos animais  que se  limitam a  seguir as regras  prescritas pela natureza, o homem se constitui como  agente livre”,2  podendo escolher ou rejeitar essas regras. Assim, enquanto “um pombo morre de fome perto de uma vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-los”,3  o homem, dotado de vontade, é capaz não apenas de diversificar seus alimentos, como também de continuar a comer quando sua necessidade natural já foi satisfeita, ainda que isso lhe cause prejuízo à saúde. É justamente essa sua condição de agente livre, e a consciência que possui dessa liberdade, uma das diferenças entre o homem e os animais, segundo Rousseau. “A natureza manda em todo animal,  e a besta  obedece. O homem experimenta  a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma”.4

Outra característica distintiva do ser humano é a sua  perfectibilidade, isto é, sua “faculdade de se aperfeiçoar”.5  Ao contrário do animal, que “é, no fim de alguns meses, o que será toda a vida, e sua espécie, ao cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos”,6  o homem pode, com o auxílio das circunstâncias, desenvolver suas potencialidades, as quais se encontram tanto no indivíduo quanto na espécie. Infelizmente, diz Rousseau, é justamente essa capacidade distintiva e quase ilimitada do homem para aperfeiçoar-se  a fonte  de todos os seus males, uma vez que é ela  a responsável por  tirá-lo do  estado de natureza no qual ele “passaria dias tranquilos e inocentes”.7 Quanto aos valores morais, Rousseau considera que, no estado de natureza, os homens não eram nem bons, nem maus, nem possuíam vícios ou virtudes, uma vez que não havia entre eles nenhum tipo de relação moral ou de deveres recíprocos. Na realidade, a única virtude natural que possuíam era a  piedade, entendida como uma “repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”.8  Decorre daí a ideia do  bom selvagem, frequentemente associada à teoria de Rousseau. Dessa virtude natural é que resultam as virtudes sociais como a generosidade, a clemência, a humanidade, a benquerença e a comiseração. Essa piedade natural do homem opõe-se ao seu  amor-próprio,9  nele gerado pela razão e pela reflexão, típicas do estado de sociedade. É por causa da reflexão que o homem é capaz de pensar primeiro em si e, vendo sofrer um seu semelhante, dizer: “Morre, se queres; estou em segurança”.10

E complementa Rousseau: “Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade”.11 A piedade é, pois, para Rousseau, um sentimento natural presente em todos os homens. Daí sua posição, de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, ser contrária a de outros pensadores, como Hobbes, por exemplo. “É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à  sua doce voz; é ela  que impede todo selvagem robusto de arrebatar a  uma criança fraca ou a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada,  Faze a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente:  Faze o teu bem com o menor mal possível a outrem”.12  Esta era, em linhas gerais, segundo Rousseau, a situação em que vivia o homem no estado de natureza, no qual a desigualdade praticamente não existia.

 

1 ROUSSEAU, J.-J.  Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens.  Disponível em: . p.  14.  Acesso  em:  26  dez.  2008.

2 Idem, p. 18.

3 Ibidem.

4 Ibidem.

5 Ibidem.

6 Ibidem.

7 Ibidem.

8 Idem, p. 24.

9 Rousseau adverte que não se pode confundir  amor-próprio  com  amor de si mesmo. São dois sentimentos muito distintos. . “O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar por sua própria  conservação,  e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade  e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva  cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte da honra”  (Idem. p. 62, nota 15). Uma vez estabelecida essa distinção, o autor esclarece que, no estado de natureza o amor-próprio não existe.

10  ROUSSEAU, J.-J.  Op. cit., p. 25. 11  Idem, p. 25-26. 12  Idem, p. 26.


 

A propriedade privada como origem da desigualdade social


 

O contrato social e a igualdade formal Apesar de sua crítica mordaz aos rumos tomados pela civilização, Rousseau não propõe o retorno da humanidade ao estado de natureza, o que, de resto, seria impossível. Uma vez instituída a sociedade civil, não há mais caminho de volta. Trata-se, agora, de encontrar uma forma de assegurar que a vida em sociedade esteja em conformidade com a justiça e a liberdade.

Cabe, segundo o autor, na obra  Do Contrato Social: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.”1 Como isso seria possível? Como conciliar obediência e liberdade? A resposta estaria no contrato social, isto é, na livre associação dos indivíduos que deliberadamente decidem constituir certo tipo de  sociedade e a ela obedecer. As cláusulas desse contrato se reduziriam a uma só: “a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros”.2

Alienar significa transferir para outrem o domínio ou a propriedade de alguma coisa, renunciar (Dicionário Houaiss).3  No caso em questão, trata-se de renunciar parcialmente a si mesmo (parte de seu poder, de sua vontade, de sua liberdade) em benefício da coletividade. Como, porém, esta alienação é total, isto é, praticada por todos, cada cidadão não estará obedecendo a interesses particulares de um determinado grupo, mas à  vontade geral, que é sempre dirigida para o bem comum. Assim, a ameaça da opressão, da injustiça e da desigualdade fica afastada. “Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem”.4  Como a vontade individual de cada cidadão participa da vontade geral, visto que a alienação foi aceita por todos com liberdade, a submissão à vontade geral conduz à liberdade: cada cidadão obedece às leis que prescreveu para si mesmo. Na realidade, Rousseau distingue  “liberdade natural”, que consiste em fazer tudo o que se deseja e que esteja ao alcance das próprias forças, de  “liberdade civil”  ou  “liberdade moral”, que é limitada pela vontade geral.5  Com o contrato, o homem perde a primeira, mas ganha a segunda.

E para Rousseau,  essa liberdade moral adquirida com o estado civil é a “única que torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, posto que o impulso apenas do apetite constitui a escravidão, e a obediência à lei a si mesmo prescrita é a liberdade”.6  Nesse contexto, as leis ganham novo significado: sendo resultado da vontade geral, a obediência a elas deixa de ser um mecanismo de submissão aos ricos para se tornar expressão da liberdade e da soberania do povo. Assim, de  algum  modo, o contrato social compensa, com vantagem,  a perda da  igualdade que reinava no estado de natureza, substituindo uma eventual desigualdade natural de força e de gênio entre os homens, por uma “igualdade  moral e legítima”  pela qual “todos se tornam iguais por convenção e direito”.7  Trata-se, porém, como o próprio Rousseau reconhece, de uma igualdade formal, de direito, capaz de conviver perfeitamente com a desigualdade material, de fato.

1 ROUSSEAU, J.-J.  Do Contrato Social.  Disponível em: . p. 9. Acesso em: 10 abr. 2009.

2 Idem, p. 10.

3 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa  (edição eletrônica). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2007.

4 ROUSSEAU, J.-J.  Op. cit., p. 10.

5 Idem, p. 12.

6 Ibidem.

7 Idem, p. 13.


 

Liberdade - Introdução


 

A liberdade é, sem dúvida, um dos valores mais apregoados e defendidos no mundo contemporâneo. Figura como direito inalienável na Declaração  universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e na Constituição da maioria das nações. No caso do Brasil, esse direito é assegurado pelo artigo 5o  da Constituição Federal. Mas será que todos a entendemos no mesmo sentido? Em nome desse valor moral tão decantado já não se cometeram horríveis atrocidades?  Será que ela se aplica da mesma maneira a todas as pessoas e classes sociais? Por  exemplo,  a Constituição diz, no artigo 5o, inciso XIII,  que “é livre  o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Na prática, porém, todos podem escolher com liberdade a profissão que irão exercer? O inciso XV do mesmo artigo diz que “é livre a locomoção no território nacional”. Mas todos têm iguais condições para decidir quando, como e para onde desejam ir, por exemplo, nas férias ou nos feriados prolongados? Será que a liberdade proclamada no plano formal (na lei, por exemplo) está sendo assegurada na prática? Do ponto de vista estritamente filosófico, podemos perguntar: O homem é livre para agir segundo sua vontade ou está sujeito a  alguma espécie de lei ou mecanismo que determina  a forma como ele se comporta?. Em outras palavras: as coisas acontecem de  determinada forma porque têm necessariamente que acontecer assim, ou somos nós quem as fazemos conforme bem entendemos? Ou será que, na verdade, tudo acontece por acaso, fortuitamente? Afinal, existe um destino previamente traçado e do qual não conseguimos escapar, ou somos nós os autores e sujeitos do nosso destino, da nossa história? Enfim, é possível ao homem exercer a liberdade? Em que medida?


 

Reflita:


 

Como a liberdade é vista pela lei?

As linhas que se seguem abaixo refletem exemplos de liberdades democráticas?


 

O ato institucional no  5, de 13 de Dezembro de 1968


 

O  ato  institucional no  5, de 1968, conhecido como  ai-5, um dos instrumentos jurídicos usados pela ditadura militar instalada no Brasil em 1964, tinha como uma de suas justificativas assegurar a “autêntica ordem democrática, baseada na liberdade” e  “no respeito à dignidade da pessoa humana”. Apesar disso, instituía medidas de exceção, tais como: dava amplos poderes ao presidente da República, que podia, entre outras medidas: “decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores”; “legislar em todas as matérias”; “decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição”; “suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais”; suspender o “direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais”; proibir “atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política”; impor a “liberdade vigiada”; proibir de “frequentar determinados lugares”; “demitir, remover, aposentar  ou pôr em disponibilidade”  empregados de “autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista”, além de “demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares”; “decretar o estado de sítio”; suspender “a garantia de habeas corpus”. Assim, em nome da liberdade, da democracia e da dignidade humana, o AI-5 passava por cima da Constituição, lei maior que justamente deveria salvaguardar esses princípios.

 

Baseado em  O Ato Institucional no  5, de 13 de Dezembro de 1968. Disponível em:  . Acesso em: 18 mar. 2009.


 

Liberdade segundo Aristóteles


 

A posição do libertarismo é aquela que entende a liberdade como a possibilidade do indivíduo de decidir e agir conforme sua própria vontade. Ser livre é, pois, o mesmo que agir  voluntariamente, sendo esta vontade determinada pelo próprio agente exclusivamente. Ou seja, diante de uma situação qualquer, posso agir de uma maneira ou de outra, dependendo apenas de minha decisão. Daí esta concepção também ser denominada de perspectiva da  autodeterminação, pois o próprio sujeito que age é a causa de sua ação, sem que sofra qualquer constrangimento de fatores externos a ele.

Esta é, também, ao que parece, a posição que mais se aproxima da concepção de liberdade característica do senso comum. um dos primeiros a formular essa noção de liberdade foi Aristóteles, 384-322 a.C., em sua obra  Ética a Nicômaco, mais precisamente no Livro III. Inicia distinguindo o voluntário do involuntário. “Parecem ser involuntárias as ações praticadas por força ou por ignorância. É forçado o ato cujo princípio  é exterior  ao agente, princípio  para o qual  o agente ou  o paciente  em nada contribui; por exemplo, se o vento ou homens, que dominam a situação, levarem-no a algum lugar”1. Por conseguinte, “o voluntário parece ser aquilo cujo princípio reside no agente que conhece as circunstâncias particulares nas quais ocorre a ação”2.

Mas há, também, para Aristóteles, certas ações que parecem misturar o caráter voluntário e involuntário. Por exemplo, “se um tirano ordenasse a alguém fazer algo ignóbil retendo em seu poder pais e f ilhos que seriam salvos se o fizesse, mas morreriam se não o fizesse”; ou quando se faz “o lançamento ao mar da carga de um navio durante uma tempestade”3  em nome da segurança da embarcação. Embora seja discutível o caráter voluntário ou involuntário de atos desse tipo, eles se assemelham mais a atos voluntários, visto que em condições normais não teriam sido realizados. Resultam, portanto, de uma  escolha  que se dá em função das circunstâncias do momento. São, portanto, ações “voluntárias, mas absolutamente, presumivelmente, são involuntárias, pois ninguém escolheria quaisquer destes atos por si mesmos”4, isto é, pelo que eles próprios representam. Mas, como vimos, o involuntário é também aquilo que se faz por ignorância.

E existe uma diferença entre agir  por  ignorância e agir  na  ignorância. No primeiro caso, age-se por causa da ignorância, isto é, a ignorância é a causa da ação. Se soubesse o que fazia, a pessoa não agiria de tal maneira. Por exemplo, quando uma criança brincando com um revólver o dispara acidentalmente, ferindo uma pessoa, ou quando alguém tem uma reação alérgica a um medicamento cujos efeitos colaterais desconhecia. No segundo caso, a ignorância não é propriamente a causa da ação, mas, ao contrário, consequência de uma outra causa (a embriaguez, a fúria etc.), que leva a pessoa a ignorar momentaneamente o que faz. Por exemplo, quando um homem embriagado atravessa uma avenida movimentada pondo em risco sua vida e a de outra pessoa. Após esclarecer o sentido de voluntário e involuntário, Aristóteles passa a discutir o conceito de escolha. Em primeiro lugar, “a escolha deliberada é acompanhada de pensamento e reflexão”5. Por isso, ela é própria dos seres humanos. Os animais não são capazes de escolher, como vimos no exemplo dado por Rousseau (Caderno 2, segunda Situação de Aprendizagem – texto:  O homem no estado de natureza): um gato faminto morre de fome diante de uma porção de frutas. Não lhe é possível decidir comê-las ou não. Apenas obedece aos condicionamentos que a natureza lhe impôs. O homem, ao contrário, dotado da  capacidade de escolha, pode se alimentar do  que não gosta e até de alimentos que lhe são prejudiciais à saúde. Escolher envolve sempre  deliberação, decisão. Deliberar, por sua vez, requer investigação e análise6. Mas nem tudo é passível de deliberação. Sobre certas coisas não temos nenhum poder de decidir. Por exemplo: o fato de a diagonal e os lados de um quadrado terem medidas diferentes, os solstícios, o nascimento e a morte das estrelas, as secas e as chuvas, os acontecimentos fortuitos (como um tesouro que se encontra por acaso, ou um pneu que fura na estrada). Mesmo entre os atos humanos há muitos sobre os quais não podemos deliberar.  um brasileiro não pode decidir sobre as leis da Argentina. Em suma, nenhuma dessas coisas pode ocorrer por nossa iniciativa. Sobre o que, então, podemos escolher e deliberar? Apenas “sobre as coisas que estão em nosso poder, i.e., que podem ser feitas”7. Ou seja, deliberamos sobre coisas possíveis, as quais são assim definidas por Aristóteles: “São possíveis aquelas coisas que ocorrem por nós mesmos”8, isto é, que podemos realizar com nossos próprios esforços. Por exemplo: um médico pode deliberar sobre os meios de conduzir o tratamento; um comerciante, sobre as formas de negociar seus produtos; um professor, sobre os procedimentos didáticos mais adequados; e assim por diante. Assim, diz Aristóteles, “cada um de nós homens delibera sobre aquilo que pode ser feito por si próprio”9.

Ora, se a escolha supõe deliberação e só podemos deliberar sobre coisas possíveis (que estão a nosso alcance), então só podemos escolher coisas possíveis. “A escolha não pode visar a coisas impossíveis, e quem declarasse escolhê-las passaria por tolo e ridículo”10. Temos, então, uma definição de escolha: “Dado que o objeto de escolha deliberada é o objeto de desejo deliberado do que está em nosso poder, a escolha deliberada será, então, o desejo deliberativo do que está em nosso poder, pois, julgando em função de ter deliberado, desejamos conformemente a deliberação”11. Concluindo, podemos tentar agora definir a liberdade com base no que vimos do pensamento de Aristóteles. Liberdade seria, então, agir voluntariamente (isto é, tendo no próprio agente o princípio motor da ação e sem qualquer interferência externa a ele), podendo escolher entre coisas possíveis mediante um processo de deliberação. O problema dessa concepção de liberdade é que ela exclui por completo qualquer determinação exterior ao sujeito, entendendo que, se nossas escolhas resultassem de causas externas a  nós ou de leis necessárias, ou mesmo do acaso, não dependeriam de nossa deliberação e, consequentemente, não seriam livres. A liberdade seria, pois, impossível. Mas será que nossas escolhas podem ser isoladas das circunstâncias em que as fazemos e que, muitas vezes, independem de nossa vontade? Por exemplo: o médico pode escolher o melhor tratamento para um paciente que não pode pagar por ele, ou se o hospital de sua cidade não possui os devidos recursos? O pequeno comerciante tem liberdade para decidir o preço de suas mercadorias, tendo que enfrentar a concorrência dos grandes? O professor pode adotar os recursos didáticos que deseja, se a escola não dispõe de bibliotecas, laboratórios, equipamentos, enfim, das condições objetivas adequadas? Se  a resposta for  negativa, talvez  tenhamos de  admitir que  o  libertarismo não responda  de forma plenamente satisfatória ao problema da liberdade.

 

1  ARISTÓTELES.  Ethica Nicomachea  I, 13 – III, 8  – Tratado da virtude moral. Tradução Marco  zingano. São Paulo, Odysseus Editora, 2008. p. 59 [1109b35-1110a1].

2 Idem, p. 63 [1111a20].

3 Idem, p. 59 [1110a5].

4 Idem, p. 60 [1110a15-20].

5 Idem, p. 66 [1112a-15].

6 Idem, p. 68 [1112b - 20].

7 Idem, p. 67 [1112b - 30].

8 Idem, p. 68 [ 1112b - 25].

9 Idem, p. 67 [1112a - 30]. É importante lembrar que Aristóteles pensava  a liberdade no contexto da polis, da política, portanto de uma perspectiva coletiva, própria da filosofia do século IV a.C.

10  Idem, p. 284 [1111b – 20].

11  Idem, p. 69 [1113a-10].


 

Sartre e a Liberdade: acesse o link:

www.humanidades.esy.es/sartre_liberdade.htm

 



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