Todos os homens são Filósofos - Antonio Gramsci

28/05/2020 11:39

Todos os homens são filósofos

 

Antônio Gramsci, um filósofo italiano do século passado, já alertava para a necessidade de se combater o preconceito muito difundido de que a filosofia é uma atividade intelectual muito difícil, por isso, restrita a uma minoria de inteligência privilegiada. Isso porque para ele, num certo sentido "todos os homens são filósofos", pois de algum modo, todas as pessoas, sem distinção, independente de seu grau de escolaridade, lidam, convivem, trabalham com a filosofia e a utilizam no seu dia-a-dia, mesmo que não se apercebam disso. Afinal, a filosofia está presente "na linguagem, no senso comum, no bom senso e na religião", enfim, "em todo o sistema de crenças, supertições, opiniões, modo de ser e agir" que caracteriza o que convencionalmente se denomina de "folclore" e do qual todos participam.

A filosofia está presente na linguagem porque esta não é pura e simplesmente um amontoado de "palavras gramaticalmente vazias de conteúdo". Ao contrário, ela é um "conjunto de noções e conhecimentos determinados", muitos dos quais derivados da filosofia. Portanto, a filosofia está presente na linguagem que utilizamos, mesmo que não tenhamos consciência disso. Daí porque, para Gramsci: "linguagem significa também cultura e filosofia (ainda no nível do senso comum)".

O senso comum é o conjunto de valores, crenças. Opiniões, preferências, que constitui a nossa visão de mundo e que orienta nossas ações e escolhas cotidianas. Em geral é assim acriticamente, sem qualquer questionamento. A exemplo do que acontece com a linguagem, muitos desses valores e crenças tem origem da filosofia, mas nós os assimilamos espontaneamente, sem nos darmos conta de sua origem. Simplesmente pensamos e vivemos de uma determinada maneira, acreditamos em certo grupo de valores, defendemos alguma posição política, ideológica ou religiosa, e assim por diante, sem, no entanto, nos preocuparmos em fundamentar nossas opiniões. Ao contrário, contentamo-nos com argumentos superficiais, muitas vezes até inconsistentes ou contraditórios.

 

 

O "bom senso", por sua vez "é algo que se contrapões ao senso comum" e, nesse sentido, "coincide com a filosofia". Enquanto o senso comum é acrítico, espontâneo, irrefletido, o bom senso implica refletir, tomar consciência que os acontecimentos possuem uma dimensão racional e que, portanto, devem ser compreendidos e enfrentados também de forma racional, a fim de se obter uma orientação consciente para a ação, evitando se deixar levar por "impulsos instintivos e violentos".

Esse "bom senso" é o que Gramsci chamou de "núcleo sadio do conhecimento popular". Ou seja, mesmo ao nível do conhecimento popular, é possível refletir, pensar de maneira crítica sobre a realidade, tomar consciência dela e agir de modo coerente com essa consciência. E isso, de certo modo, já é "filosofar", pelo menos um filosofar ao nível de conhecimento popular. De fato, não é raro vermos pessoas simples, às vezes com pouca ou nenhuma escolaridade que revelam um entendimento aguçado e bem elaborado da realidade que vivem.

Finalmente a filosofia está presente na religião porque também na experiência religiosa não deparamos com questões e conceitos (deus, alma, morte, fé, etc.) que foram e continuam sendo objeto da reflexão e da elaboração dos filósofos.

Portanto, se a filosofia está contida na linguagem, no senso comum, no bom senso e na religião, podemos dizer então que ela está presente em todas as dimensões da vida humana, sendo, portanto, familiar a todas as pessoas. Afinal, toda a atividade humana, mesmo aquelas que são predominantemente práticas (as diversas formas de trabalho manual, por exemplo), e sempre acompanhada de um pensar e de um saber, em suma, de um trabalho intelectual, racional, reflexivo. É nesse sentido que podemos afirmar que "todos os homens são filósofos".

 

Filósofos e filósofos

 

Se "todos os homens são 'filósofos'", como quer Gramsci, qual é, então, a diferença entre o filosofar de uma pessoa comum e a de um filósofo profissional ou especialista? O próprio autor esclarece:

"O filósofo profissional ou técnico não só 'pensa' com maior rigor lógico, com maior coerência, com maior espírito de sistema do que os outros homens, mas conhece toda a história do pensamento, isto é, sabe as razões do desenvolvimento que o pensamento sofreu até ele e está em condições de retomar os problemas a partir do ponto em que eles se encontram, após terem sofrido a mais alta tentativa de solução etc. Ele tem, no campo do pensamento, a mesma função que os diversos campos científicos têm os especialistas".

Trocando em miúdos podemos dizer que o filósofo especialista: pensa, reflete, raciocina observando mais cuidadosamente as regras da lógica e os procedimentos metodológicos que utiliza; conhece a história do pensamento, isto é, a história da filosofia; é capaz de analisar os problemas de seu tempo à luz da contribuição dos filósofos do passado que já se debruçaram sobre eles.

Mas se existe a diferença entre o filósofo especialista e o não-especialista, porque então afirmar que "todos os homens são 'filósofos'"? Justamente para combater e destruir aquele preconceito de que a filosofia é uma atividade muito difícil e restrita a uma minoria.

É importante perceber que a propagação desse preconceito uma função política conservadora, na medida em que separa a filosofia do contato com as massas, com o povo, com as pessoas mais simples. Dessa forma, impedidas de se apropriar dos conceitos e das teorias elaboradas pelos filósofos, as pessoas ficam desprovidas dessas ferramentas intelectuais que lhes permitiriam superar mais facilmente o senso comum e adquirir um conhecimento mais crítico e elaborado da realidade que vivem.

Além disso, cabe afirmar que todos os homens são "filósofos" para deixar claro que todas as pessoas são potencialmente capazes de avançar de um "filosofar" espontâneo, assistemático, restrito ao senso comum, para um filosofar mais elaborado e rigoroso, semelhante ao praticado pelos filósofos especialistas. Para isso é necessário que a filosofia e os filósofos estejam em permanente contato como o povo, a fim de ajudarem a promover um avanço cultural de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais. Só através desse contato que a filosofia se torna "histórica", depura-se de elementos intelectualistas de natureza individual e se transforma em "vida".

 

O que é, afinal, a filosofia?

 

Conhecemos pela origem da palavra. Filosofia vem do grego (philo = amigo ou amante + Sophia = saber, sabedoria) e significa amor ou amizade pelos saber. Quem ama sente-se carente do objeto amado e, por isso, vai a sua procura. No caso do filósofo como o objeto de seu desejo é o saber, o conhecimento e é a este que ele busca.

Para explicar o sentido dessa atitude de busca do saber, próprio da filosofia, Platão em sua obra O Banquete, recria, pela boca de Sócrates o mito do nascimento do amor.

Quando nasceu Afrodite, conta Sócrates, os deuses deram um banquete para celebrar a ocasião.

Entre eles, encontrava-se também, Recurso, filho de Prudência. Quando o jantar terminou, Pobreza chegou e postou-se a porta para esmolar. Recurso havia se embriagado e, dirigindo-se ao jardim de Zeus adormeceu. Pobreza, aproveitando-se da situação, deitou-se ao lado e concebeu o Amor (Eros). Assim, gerado no dia do nascimento de Afrodite Amor (Eros) tornou-se companheiro e servo e, ao mesmo tempo, amante do belo, pois Afrodite é bela.

Por ser filho de Pobreza e Recurso, ele, o Amor, é por parte da mãe "sempre pobre", carente e padecedor de muitas necessidades; por parte de pai, porém, "ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista".

Por essa sua natureza dividida Amor (Eros) está no meio entre a sabedoria e a ignorância. A sabedoria é a condição daquele que já possui o saber e, por isso, não sente necessidade de busca-lo. É o caso dos deuses. Por isso, os deuses não filosofam. Os ignorantes, por sua vez, embora nada saibam, julgam saber o suficiente e, por isso, não anseiam por saber mais. Logo também não filosofam.

Quem então filosofa? Pergunta Sócrates. Aqueles que estão entre estes dois extremos: a sabedoria e a ignorância. Um deles é o amor.

"Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia e é pobre".

Mas o saber que filósofo almeja não é de um tipo qualquer. Não é, por exemplo, aquele do senso comum que se expressa como opinião e o qual os gregos antigos denominavam doxa. O saber buscado pelo filósofo é Sophia, isto é, um saber bem fundamentado, amparado em demonstrações racionais consistentes e passível de ser considerado verdadeiro, independente das opiniões particulares. O mesmo tipo de saber buscado por Sócrates por meio de seu método dialético. Não fosse assim, o termo philopho (amante do saber) deveria ser substituído pelo philodoxo (amante da opinião).

 

A filosofia como instrumento de desbanalização do mundo

 

    Quando iniciamos os estudos em filosofia, rapidamente buscamos descobrir o seu significado, sua definição. É claro que podemos encontrar rapidamente o significado da filosofia a partir das definições clássicas. Isto, no entanto, não esgota a sede de respostas de um indivíduo mais inquisidor. Assim, torna-se mais prático e mais compreensível a busca da resposta para o que é a filosofia a partir da sua própria prática, seja na antiguidade ou nos dias de hoje. 

    A filosofia surgiu entre os gregos como uma forma de conhecimento paralelo à religião e aos mitos, embora parta de algumas perguntas elaboradas por esta. Ao usar a resposta racional como fonte de explicação para os fenômenos do universo, os gregos iniciaram um processo de desbanalização do seu cotidiano. O homem inquisidor, o filósofo, era exatamente aquele que via o mundo a partir de outro prisma, o da desbanalização. Qualquer que seja a definição de filosofia, antiga ou moderna, sempre a teremos como um instrumento a serviço dos homens para a desbanalização do mundo. Isto é, com a filosofia o homem pode lançar um olhar investigativo, racional, sobre as coisas que cotidianamente os homens aceitam como verdade, embora, na maioria das vezes não o sejam. Pensemos um pouco a nossa sociedade. Quantas vezes paramos para pensar sobre o que é a política efetivamente? Quantas vezes pensamos sobre o nosso cotidiano político, sobre a forma como se organizou o nosso Estado e a nossa democracia? Aliais, o que é a democracia? E quanto ao aborto, é justo proibi-lo ou liberá-lo? É justo um aborto em caso de estupro? E quanto as células embrionárias tronco, são boas ou ruins? E os alimentos transgênicos? E o individualismo? E...

    Agora podemos perceber o quanto há o que se pensar no nosso cotidiano. Existem incontáveis questões que envolvem diretamente a nossa vida e que podem ser respondidas através do pensamento filosófico. Não devemos nos entregar às respostas banalizadas que nos são fornecidas pelos meios de comunicação tais como a televisão, o rádio e a internet. Sim, isto mesmo, a internet! Todos os seres humanos são pré-dispostos a desbanalização do mundo, e, portanto, à filosofia, pois todos os homens possuem a capacidade de raciocinar. Nenhum homem pode abdicar disso. Isto seria negar a nossa própria condição humana. Seria a porta de entrada para a perpetuação de crimes gravíssimos, tais como os perpetuados a partir de Hitler, pelos nazistas. Quando abdicamos da nossa razão negamos aquilo que nos faz humanos, somos usurpados por alguma mente que se julga capaz de conduzir a mente dos outros.

    Este espírito filosófico foi evidenciado pelo filósofo Sócrates que se dizia sempre descontente com as verdades fáceis, com aquilo que se apresenta diante dos homens como um ponto absoluto e impensável. 

Na obra Mênon do filósofo Sócrates, foi assim descrito:

"... eu sabia que nada mais fazes do que duvidar e despertar dúvidas no espírito dos outros! E é por isso que agora, segundo me parece, me tens enganado e enfeitiçado e embruxado por ti, e cheio de dúvidas! Se me permites uma brincadeira direi que pelo teu corpo e por muitas outras características de teu ser, fica sabendo que és muito parecido com a tremelga do mar: esta com efeito, entorpece a quem quer que se lhe aproxime e toque e parece que me entorpeceste a mim!" (s/d, p. 83).

Ao ser tocado, este peixe chamado de tremelga do mar dispara descargas elétricas atordoantes. Eis a função da filosofia enquanto instrumento de desbanalização: deixar os indivíduos duvidosos, inquietos ávidos pela busca do conhecimento verdadeiro chamado pelos gregos de Sophia.

 

Atividade  I

 

3º Ano A: questões dissertativas

3º Ano C: questões dissertativas

3º Ano D: questões dissertativas

3º Ano E: questões dissertativas